A musa e o tango - conto

Fazia tempo que Arthur sonhava frequentemente com uma melodia. No sonho, uma bela moça executava a música em uma flauta. O aspecto da moça era de uma beleza exótica, como se não pertencesse a esta época; uma longa cabeleira castanha se estendia sobre seus ombros; mas o elemento que mais claramente aparecia no sonho era a música, uma melodia doce e rica em variações harmônicas. Após acordar, Arthur tentava reproduzir a melodia no seu piano, mas não era fácil lembrar a música onírica durante a vigília; portanto, o pianista demorou alguns dias para recordar as primeiras frases musicais ouvidas naquele sonho recorrente.

O sonho vinha com frequência, chegando a ser quase diária. O aspecto da moça variava algumas vezes, mostrando-se mais morena ou mais loira, e o formato da flauta também se mostrava variável. Esta, em algumas ocasiões, aparecia dupla, com duas extensões bifurcando-se em V. Houve uma vez em que sonhou a moça tocando um alaúde. Após vários dias, Arthur conseguiu escrever algumas frases musicais na folha pautada, mas ainda estava inconclusa.

E qual seria o gênero daquela música? A princípio, Arthur decidiu executá-la como uma peça clássica - ou barroca. As notas que espremia no piano davam um ar de bourrée. Mas percebia uma certa dramaticidade naquela melodia que a fazia se aproximar de um tango, um gênero que ele apreciava sobremaneira, mas com o qual não tinha toda a familiaridade que desejasse.

Foi assim que Arthur decidiu viajar a Buenos Aires, na intuição de que aquela música que volta e meia se apresentava nos seus sonhos podia se tratar efetivamente de um tango e quis conhecer o gênero nas suas raízes.

 

 

Nos preparativos da viagem, fez uma reserva de um alojamento por temporada. Arthur não tinha muito dinheiro, mas aproveitou uma oferta de passagens baratas e alugou um apartamento bastante humilde. Este estava localizado em um velho casarão reciclado no bairro da Boca, provavelmente um antigo conventillo. A porta que dava para a rua era de madeira maciça bastante velha e descascada, evidenciando que não recebia um verniz havia muito tempo; tinha duas folhas e uma janela de grades pretas em formato artesanal em cada uma delas. Para chegar ao apartamento, devia percorrer um corredor estreito de piso com quadros de cerâmica branca com filigranas vermelhas, ao final do qual chegava ao aposento subindo a um andar alto por uma escada de mármore bastante gasta e com alguns degraus algo lascados. O estilo antigo da moradia dava a Arthur a sensação de ter viajado no tempo.

No dia seguinte à sua chegada, ouviu uma música vinda de algum lugar indefinido. Incrivelmente, parecia-se muito à melodia com que Arthur sonhava e tentava elucidar. Saiu pela porta do apartamento, também de madeira velha e duas folhas como a que dava para a rua, mas sem grades, e ficou parado na varanda prestando atenção à melodia que não vinha da sua mente, mas de algum lugar por ali fora, seguramente de um apartamento vizinho. Tratava-se do som de um bandoneon. Aguçando a atenção, percebeu que provinha do apartamento logo abaixo dele.

Desceu as escadas até o pátio central do casarão. A música ficou mais intensa, pois estava se aproximando da fonte desta. Assim, comprovou que a melodia provinha de dentro de um dos três apartamentos que rodeavam o pátio térreo. Agora não havia dúvida, era a mesma música com que Arthur sonhara repetidas vezes e que, aos poucos, transcrevia no papel.

Movido pela curiosidade e o assombro de ouvir a música dos seus próprios sonhos, bateu à porta do apartamento. A música parou e ouviram-se passos chegando até a porta. Apareceu frente a Arthur um homem de meia idade, cabelo castanho escuro meio clareado por alguns fios brancos nas têmporas, um pouco mais baixo do que ele. Arthur se apresentou dizendo-lhe que era brasileiro e também era músico, e quis conhecer quem tocava aquela música. O bandoneonista se apresentou como Agustín e o convidou a entrar no seu aposento e lhe ofereceu um café. Arthur aceitou e lhe relatou a história dos sonhos com a moça tocando aquela mesma música que Agustín tocava. Este empalideceu ante o relato do brasileiro e lhe contou que também sonhou com a mesma melodia tocada pela mesma moça do sonho de Arthur. Assim, o bandoneonista começou a decifrar a música dos sonhos nos seus momentos de vigília e a transcrevê-la igual o fazia o pianista. Mas Agustín dizia ter descoberto quem era a misteriosa moça: tratava-se de Euterpe, a musa grega da música. O bandoneonista pegou de uma estante uma pequena gravura em que se reproduzia a imagem da musa e a entregou a Arthur. Ali estava a que parecia ser a moça dos sonhos: Euterpe em pé, de perfil, gravada em preto e branco, executando a flauta bifurcada que tocara nas aparições oníricas.

O argentino chegou a contar que, em um dos sonhos, perguntou à musa o que pretendia ao tocar aquela melodia para ele. Esta lhe disse que quando alguém decifrasse aquela música, os deuses o presentearão com os prazeres da glória e a fama. E acrescentou: “Agora somos você e eu os escolhidos. Pense no que pode dar nossa parceria. Os prazeres da glória e da fama podem ser nossos!" Arthur percebeu um certo tom de loucura na fala do bandoneonista e naquele momento desejou não ter a ver com aquela história na qual se embarcara obsessivamente durante meses.

Depois de conhecer e conversar durante uma tarde com Agustín, Arthur concordou em voltar a conversar com ele sobre uma possível parceria. Retornou ao seu apartamento e, estando já anoitecendo e sentindo-se sonolento, dormiu. Sonhou com a musa novamente. No sonho, perguntou a ela acerca de detalhes sobre a glória e a fama que os deuses dariam a quem executasse seu tango e quais eram as intenções dela com aquele oferecimento. A musa só respondia: “Eu sou a doadora de prazeres, mas você não deveria saber mais nada sobre mim, só tocar a minha música”; ao lhe perguntar o porquê não deveria saber sobre ela, apenas respondeu: “Agustín sabe o porquê”.

Arthur acordou de manhã intrigado com a mensagem da musa. Levantou-se depressa e desceu ao apartamento do bandoneonista, disposto a convidá-lo para um café da manhã e contar-lhe do sonho, com a esperança de receber alguma resposta àquela incógnita. Bateu à porta, mas ninguém respondeu ao chamado. Achou estranho o silêncio vindo de dentro, pois a porta estava apenas encostada. Entrou no apartamento; chamou mais uma vez por Agustín, mas não encontrou rastros dele. Após percorrer toda a casa, não achou o menor sinal do seu morador, mas o bandoneon estava no chão, junto a uma cadeira frente a um atril com folhas de música, sinal de que Agustín estivera tocando momentos atrás. Na folha pautada, Arthur percebeu as notas do tango dos sonhos de ambos, mas, com uma mistura de espanto e admiração, comprovou que ali estava a música escrita até o final. No cabeçalho, leu o título Tango de los Placeres, e num canto do atril a gravura de Euterpe. Um gelo atravessou a espinha de Arthur, mas este procurou se acalmar com pensamentos leves. Será que Agustín tinha decifrado o tango inteiro e saiu para comemorar? Se assim fosse, por que não avisou Arthur primeiramente? Perguntou aos vizinhos que moravam nos outros apartamentos se sabiam alguma coisa de Agustín. Eles disseram que acabavam de acordar e não sabiam do músico, mas que normalmente, ele ficava em casa de manhã; às vezes, dormindo até tarde. Todavia, naquela manhã, Agustín não estava em casa. O bandoneonista não voltou em todo o dia e, no dia seguinte, ainda não retornou. Passadas vinte e quatro horas, Arthur acompanhou os vizinhos a relatar o desaparecimento à polícia.

 

Os dias da viagem de Arthur acabaram e o pianista teve que retornar a Brasília. Agustín não apareceu mais. Arthur levou consigo a gravura da musa. Nela estava escrita em letras estilizadas o nome dela: EUTERPE, e mais embaixo GIVER OF PLEASURE, mas sem informação sobre o autor do desenho. Pensou também em levar a partitura, mas não quis profanar uma arte que achava que não lhe pertencia. Preferiu fotografá-la com o telefone celular e deixar o original onde estava.

Uma vez em Brasília, Arthur ficou duvidando sobre se devia tocar aquela música; não só por não ter segurança sobre se sua criação realmente pertencia a ele, mas porque envolvia uma história que o assombrava. Em sua casa, colocou a imagem de Euterpe numa estante da sala, frente ao piano elétrico em que ensaiava. Sentou-se frente a ela e queria perguntar-lhe se devia tocar aquele tango. Mas só se tratava de um pedaço de papel com uma gravura. Pensou em encontrá-la em sonhos para interrogá-la, mas nunca mais conseguiu conversar com ela. Olhava para a imagem antes de dormir para poder sonhar com a musa, mas não dava resultado. Se alguma vez apareceu nos sonhos, passava só de um modo distante. Alguma vez a sonhou tocando sua flauta, mas desta vez sem uma melodia clara e que pudesse lembrar e sem responder às perguntas do músico.

Com o passar do tempo, e ante a impossibilidade de voltar a ter contato onírico com a musa, Arthur foi se esquecendo da história. Só foi lembrar quando, certo dia, procurando vídeos de tango na internet, achou um intitulado Tango de los Placeres, cuja autoria era creditada a Agustín Caggiano. Colocou-o para tocar e, de fato, tratava-se daquele mesmo tango ditado pela musa Euterpe a Agustín e a Arthur. Era interpretado por uma jovem orquestra de Buenos Aires chamada El Apoliye, um nome que o brasileiro não sabia pronunciar ao certo nem seu significado, pois seguramente se tratava de uma palavra lunfarda. Mas o caso é que, na descrição do vídeo, o diretor da orquestra faz uma dedicatória ao autor com as seguintes palavras: “A meu amigo Agustín Caggiano, quem desapareceu misteriosamente no dia 4 de março de 2022, deixando escrito em sua casa este último e sublime tango inédito.”

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